n17 - Neve preta
Quando eu era criança eu mudei para uma cidade no interior, que tinha muita cana de açúcar. Lá, era costume ter queimadas com regularidade. Eu tinha 6 anos e via a fuligem cair, fina e preta, e corria pra pegar com a mão. Sujava tudo, frágil que nem carvão, se desfazia em pó na hora que encostava. Eu que até hoje nunca vi a neve achava que a neve devia ser assim.
Então corria, em direção à fuligem, pelo quintal e gritava:
Neve preta!
Neve preta!
Neve preta!
E cuidava para que ela não caísse em mim e pegasse nas roupas, que minha mãe não ia gostar. Mas as mãos, eu podia lavar. E podia pegar a neve preta que, debaixo das nuvens de fumaça, vinha me encontrar.
A neve preta vinha de longe, trazida pelo vento. Eu morava na cidade, as plantações ficavam distantes. Tinha um terreno do lado da minha casa em que o vizinho plantava milho e, na época da colheita, ele trazia curau que a esposa dele fez.
O terreno do fim da rua era maior: diziam que tinha sido uma fazenda e hoje era só grama. Uma época tentaram criar búfalos lá. Diziam que era da família Lee Jones, que eu sabia que era a família da Rita Lee, porque pros meus pais era um orgulho ter alguma conexão com a Rita Lee, mas na cidade ninguém mais falava isso.
Nunca vi nenhum dos dois terrenos queimar, mas a vizinha da frente da minha casa queimava o lixo. Tinha coleta de lixo na cidade, sim, no bairro, regularmente. Não lembro de ter lixo acumulado pela rua, greve de garis, falta de verba pros caminhões de coleta. A vizinha da frente queimava o lixo e produzia um cheiro horroroso, que eu não me lembro. Eu lembro da fumaça, preta, que não produzia fuligem. A fumaça e a neve preta não andavam próximas. Ela queimava seu lixo, no seu quintal, onde tinha uma árvore grande e bonita, onde viviam seus gatos, onde ela morava sozinha, na frente da minha casa, detrás do muro, porque achava que assim ninguém veria o fogo.
Eu não via, mas sentia.
Ela queimava o lixo para limpar.
Queimar é uma prática antiga para limpar terrenos.
Até hoje, é muito utilizada por ser prática e barata. É utilizada para limpar o solo e prepará-lo para novos plantios, pastagens, estradas e desmatamento.
Acabam com os nutrientes do solo mas tem alta eficiência para recomeçar o plantio.
Engraçado que quando eu fui pesquisar “Por que as pessoas queimam os terrenos?” eu já sabia decor a resposta. Achei que precisava pesquisar para confirmar, cientificamente, mas a memória da vivência se impregna na gente. Eu já sabia: limpar. Eu já sabia: nova plantação. Eu já sabia: elimina nutrientes.
Mas eu aprendi uma coisa: tem a cinza.
A cinza é um nutriente rico em potássio. Por isso, o produtor tem uma produtividade aparente melhor, mas a cada vez que ele põe fogo reduz a microfauna do solo.
Ou seja, é um benefício de curto prazo. No longo prazo, vai destruindo o solo que vai precisando de mais insumos, fertilizantes e tecnologia para produzir na mesma velocidade.
A velocidade da produção é diferente da velocidade da queimada.
48 cidades começaram a queimar em 23 de agosto.
Rafael Tímbola, O Perito Ambiental, analisa que as queimadas iniciadas no Estado de São Paulo em 23 de agosto parecem ter ocorrido de forma sincronizada. Às 18h00, três horas após o surgimento dos primeiros focos, uma grande parte do estado já estava coberta pela fumaça. Uma hora e meia depois, praticamente todo o Estado de São Paulo estava tomado pela fumaça, incluindo áreas densamente povoadas como a região metropolitana da capital.
O governador Tarcísio de Freitas anunciou “(...) um plano emergencial na Saúde para garantir o reforço nos atendimentos a casos respiratórios em decorrência da fumaça e baixa umidade do ar.” Folha
Em Americana, a casa foi tomada pela neve preta. Minha mãe, que tinha acabado de fazer faxina, viu a mesa, o sofá, a cama e os porta retratos cobertos pela fuligem das queimadas. Ela tinha deixado a janela aberta por causa do calor.
Recebi vídeos no grupo da família de vizinhos e amigos em Ribeirão Preto e Uberlândia, em que as labaredas subiam e impediram o trânsito nas estradas. Famílias deixaram suas casas e o ar ficou ainda mais difícil de respirar.
Eu tenho bronquite asmática e corria atrás da neve preta, que anunciava que a fumaça longe logo chegaria perto e eu estaria, mais uma vez, doente. Eu que saí de São Paulo porque o ar é podre encontrei ares tóxicos diferentes na minha nova cidade. Eu buscava a fuligem que sujava as mãos e era aquela sujeira que via, sem contar a que corroía os pulmões, invisível.
A ação coordenada apontada pelo perito só diz para quem mora - ou morou - nessas regiões: sua vida não vale nada. Sua saúde não vale nada. Sua casa não vale nada.
Nada de novo.
Limparam mais um terreno.
Não faço mais promessas que não posso cumprir então chego de mansinho com um texto novo. Minha amiga escritora veio me perguntar de newsletter e me deu vontade de fazer espaço e tempo pra voltar aqui. Como vocês tão? Fiquei com saudade.
Tô escrevendo agora em outros lugares: tô estudando Dramaturgia na SP Escola de Teatro (inclusive tá com inscrição aberta pro ano que vem) e é um sonho realizado. Se alguém quiser tirar dúvida comigo sobre o curso, me chama!
Esse texto, inclusive, surgiu em aula, a partir do conceito de peça-palestra, mas foi por outros caminhos, abrindo pra eu trabalhar mais autoficção que crônica. Eu tava me sentindo muito tocada com as queimadas e a memória que evocaram, de um tempo em que eu achava a destruição bonita. O processo é sempre um bem (em)bolado.
Beijo grande <3